Dia das Doenças Raras (Rare Disease Day) - relato da mãe de uma menina "rara"
Há muitos anos, convivi com uma guria chamada Gabriela, lá no ensino fundamental (quando ainda era chamado de primeiro grau, que velhas!). A vida nos afastou e, no doutorado, acabei sendo colega do marido dela (que me acordava quando nosso orientador chegava na sala e eu, grávida, dormia sem cerimônia na escrivaninha), e voltamos a nos falar. A Gabi teve uma menina linda, a Marina.
Quando a Marina era bem bebezinha, ela descobriu que tinha uma filha "rara". A Marina tem uma doença rara, um tipo de tumor vascular. No último dia de fevereiro se comemora, desde 2008, o Dia das Doenças Raras, ou Rare Disease Day, organizado pela União Européia para as doenças raras, com o objetivo de sensibilizar gestores públicos, população, indústria farmacêutica, pesquisadores, profissionais da saúde para este tipo de enfermidade, que acomete 1 em cada 20 pessoas. Essas doenças, muitas vezes genética, podem ser crônicas, progressivas, degenerativas, incapacitantes e até fatais.
Vamos conhecer a história da Marina, da Gabriela e do Leonardo, que lutam para que a doença da filha seja estudada e curada.
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No último dia de fevereiro de cada ano, celebra-se o Rare Disease Day (Dia de Doenças Raras, em tradução livre) e a minha forma de colaborar esse ano vai ser contanto um pouco da história da minha filha, Marina.
A Marina nasceu absolutamente saudável, nos primeiros meses nenhuma febrezinha sequer. Crescia e ganhava peso de forma extraordinária. Desenvolvimento psicomotor excelente. Era uma criança calma, não chorava muito, só acordava religiosamente de 2 em 2 horas para mamar. Enfim, um perfeito baby Johnson!
Quando ela tinha 3 meses e 2 dias ela teve uma crise de choro como nunca tinha tido. Ninguém conseguia acalmá-la. Era um choro diferente. Mas como estávamos no meio de uma festa de formatura achamos que podia ter sido alguma picada de inseto ou outra coisa qualquer que estava incomodando. Ela se acalmou e continuamos aproveitando a festa.
No dia seguinte noite uma pequena mancha arroxeada perto da mama direita, em direção à axila.
Mil coisas passaram pela minha cabeça: o prendedor do bico (chupeta) pode ter machucado, ela passou de colo em colo na festa, alguém pode ter machucado sem querer, alguma mordida de inseto, até o absurdo de maus tratos por parte da babá.
Os dias se seguiram e nada do roxinho sumir, pelo contrário, parecia que estava aumentando.
Como estávamos em Porto Alegre, levamos em um pediatra super conceituado na cidade, já foi chefe de uma das grandes UTIs neonato da cidade. Ele nos tranquilizou, disse que não parecia ser nada importante, que era pra continuar observando, que podia ser várias coisas, mas nenhuma que valesse a pena investigar mais a fundo.
Voltamos para Pelotas, fui levar ela na consulta com a pediatra, contei o ocorrido e ela nem sequer olhou o tal roxo. Nunca mais coloquei os pés no consultório daquela louca, óbvio!
Mais algumas consultas em outros pediatras, dermatos, mas ninguém dava muita atenção. Até que achamos um excelente pediatra, esse sim, vale a pena citar o nome, Dr. Michel Georges al Hallal.
Pela primeira vez alguém me olhou nos olhos e me disse: eu não sei, nunca vi, mas vamos pesquisar. Mais alguns encaminhamentos, outros médicos, uma biópsia e um diagnóstico (incorreto) de hemangioma do tipo strawberry nevus. A patologista estava tão desatualizada que nem sabia que não se usa mais essa terminologia, mas enfim... Eu, mãe de primeira viagem, indo nos melhores médicos, todos (inclusive vários amigos médicos) me diziam que eu não devia me preocupar, que ela estava em excelentes mãos.
Nesse meio tempo a Marina parou de crescer, foram longos 6 meses sem ganhar nem 1 centímetro sequer. Não dormia mais de tanta dor. Eu e meu marido não dormíamos mais, passávamos as noites com ela no colo pra que ela descansasse um pouco.
Mas no dia seguinte ela estava feliz da vida, sempre com um sorriso enorme e um brilho nos olhos que me faziam ir em frente. Mas a minha mãe, que é médica, especializada em medicina comunitária (vulgo médico de postinho), não descansava. Até que ela me convenceu a pedir uma revisão das lâminas da biópsia no Hospital AC Camargo, em São Paulo, e consultar uma super especialista em hemangiomas em SP também. E lá fomos nós: a Marina, eu, o Leo (meu marido), e a minha mãe.
Chegamos no consultório da médica que olhou a lesão e nos disse mais ou menos o seguinte (não muito mais delicado que isso): Olha, vocês podem esperar o resultado da revisão nas lâminas, mas eu tenho certeza de que essa criança tem um Hemangioendotelioma Kaposiforme, ela está correndo sério risco de vida e precisa começar a fazer quimioterapia pra ontem.
*Um parêntese aqui pra explicar um pouquinho do que hoje eu sei sobre essa doença:
Trata-se de uma má-formação vascular, um tumor considerado borderline. Não é um câncer, pois não causa metástase ou se espalha pelo corpo. Entretanto, o sangue começa a circular de forma descontrolada dentro do tumor, que começa a aumentar de volume e consumir as plaquetas do sangue. Entra num círculo vicioso e pode até chegar a zerar as plaquetas, gerando um risco enorme de hemorragias e até mesmo a morte. Isso se chama Síndrome de Kasabach Marritt.
O tumor em si, via de regra, não mata. Mas essas complicações levam a uma mortalidade enorme, ainda mais quando não corretamente diagnosticado e tratado.*
Não preciso dizer que o chão se abriu embaixo dos meus pés e parecia que eu estava sendo sugada para dentro de um buraco negro.Nesse dia a Marina tinha 10 meses. Ou seja, se passaram 7 meses entre o surgimento da lesão e o correto diagnóstico. A gente tinha saído de Pelotas para passar uns 4 dias fora. Eu e a Marina ficamos quase 2 meses sem voltar pra casa. Ela ficou internada por 15 dias, fazendo uma infinidade de exames, num deles ela teve um laringo-espasmo horrível e eu achei que fosse perder ela naquele dia. Só me abracei no meu marido e rezei pra que tudo aquilo acabasse bem!
Bom, daí se seguiram uma infinidade de tratamentos. Propranolol, corticóides, AAS e, por fim, quimioterapia (Vincristina) semanal por longos 6 meses. Nem um mês depois que ela parou a químio e o tumor voltou a crescer. Já não sabíamos mais o que fazer. Os médicos começaram a não se entender entre si, discordar dos tratamentos. Apenas uma médica me deixava confiante nas decisões e me explicava o porquê de cada procedimento. Essa é a médica que até hoje nos acompanha, um anjo nas nossas vidas, Dra. Mariana Michalowsky.
Resolvi pesquisar, estudar, me informar o máximo possível. Descobri dois hospitais americanos que estavam trabalhando numa pesquisa do uso de um imunossupressor para anomalias vasculares como a da Marina. Escrevi um email, explicando todo o caso e pedindo uma consultoria. Dias depois recebo a resposta da chefe da pesquisa me indicando um médico brasileiro que estava participando da pesquisa e colaborando com o grupo americano, Dr. Dov Goldenberg, outro excelente profissional que nos deu todo suporte para encararmos mais uma fase do tratamento.
Não tinha o remédio pra vender no Brasil, a importação é um causo a parte, mas conseguimos o remédio. Então a Marina começou a usar esse imunossupressor, chamado Sirulimos, ou Rapamune. É um remédio que, como o nome diz, baixa a imunidade. Era usado inicialmente para evitar rejeição em transplantados renais, mas depois descobriu-se que ele tem outras aplicações em doenças vasculares. A imunidade baixou, foram inúmeras infecções de repetição, algumas febres sem explicação, um pavor constante.
Resolvemos nos mudar pra Porto Alegre, onde o tratamento e a assistência eram mais fáceis.
As idas à emergência eram uma constante, mas aos poucos foram se espaçando. E a mancha foi "sumindo". Achamos que ela poderia parar a medicação. Aproveitamos para interromper o tratamento e fazer a atualização das vacinas (ela não podia tomar vacinas durante a químio e nem usando o imunossupressor). Mas infelizmente o tumor voltou a crescer quando o tratamento foi suspenso. No dia do aniversário dela de 3 anos ela reclamou que estava com dor. E lá fomos nós de novo....
Hoje ela está com 3 anos e 5 meses. Retomamos o tratamento com o Rapamune. A lesão diminuiu e as infecções estão mais espaçadas. Conseguimos levar uma vida praticamente normal. A Marina diz que tem uma tatuagem embaixo do braço. Essa é uma das únicas marcas que ficaram nela disso tudo.
Ela é uma menina encantadora, simpática, alegre, cheia de vida! Quem não nos conhece bem ou não sabe da nossa história custa a acreditar que a doença dela seja tão séria e que já passamos por tudo isso. Pra nós três (a Marina, eu e o Leo), essa é a nossa vida! E a nossa vida é maravilhosa! A gente consegue fazer de um limão uma limonada. Passeamos, brincamos, viajamos (quando sobra um troco no final do mês, o que raramente acontece... hehehehe), nos divertimos onde quer que estivermos.
Essa é uma doença realmente rara. Então existem pouquíssimos estudos e pouco conhecimento sobre o futuro. O que me diziam é que a tendência era que, como os outros hemangiomas, ele cedesse com o tempo. Isso não aconteceu. Cada recidiva foi dolorosa.
Em compensação, a Marina nunca teve as complicações típicas da Síndrome de Kasabach Merritt, o que já é um alívio e tanto.
Não sabemos quais efeitos a longo prazo todas essas medicações (especialmente a quimioterapia e o imunossupressor) podem ter. Sabemos que por enquanto ela ainda não pode ficar sem o Rapamune. Talvez daqui um ano ou dois a gente tente fazer a retirada novamente.
Sabemos que temos uma vida normal, dentro dos nossos padrões de normalidade.
Sabemos que somos felizes do nosso jeito, juntos e unidos.
Sei que sem meu marido e minha família teria sido impossível!
Sei que coração de mãe (e de vó) quase nunca se enganam!
Espero que o meu relato possa ajudar e servir de alento a alguma mãe em desespero, como muitas vezes eu estive. Qualquer ajuda que eu possa dar, seja no que for, podem me chamar, estarei sempre disposta a ajudar! Quem quiser, pede meu email pra Cris!
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