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Carta à minha menina



Minha menina


Hoje é o dia internacional das meninas e eu quero te escrever essa carta, para leres no futuro.


Estamos em 2017 e ainda não atingimos os objetivos da Carta das Mulheres, que dizia que a Constituinte, pra valer, tem que ter palavra de mulher. Esse documento é tão bonito, filha. Ele diz que, para nós mulheres, o exercício pleno da cidadania significa direito à representação, à voz e a vez na vida púbica, mas também defende a dignidade na vida cotidiana, que devemos ter assegurados o direito à educação, à saúde, à segurança e a vivência familiar sem traumas.


A Carta, como princípio geral, defendia a igualdade entre homens e mulheres como alicerce da Democracia, debatendo que os salários devem ser iguais para trabalho igual, independentemente de gênero. Ela desejava que fosse direito da mulher conhecer e decidir sobre seu corpo, e reconhecia a maternidade e a paternidade como função social, sendo dever do estado garantir aos pais os meios necessários de acesso à educação, creche, saúde, alimentação e segurança de seus filhos,


A Carta, tão abrangente, dizia que a educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e todas as formas de discriminação e dizia que todo ato que envolva agressão física, psicológica e sexual contra a mulher, DENTRO e fora do lar, deve ser criminalizado.


Bom, filha, esses 32 anos que separam essa carta dos dias de hoje não foram suficientes pra que ela fosse colocada em prática. A representação política das mulheres, em todas as instâncias, está na casa dos 13%. Agora, enquanto te escrevo, eu trabalho para uma parlamentar, mas vai saber como será quando você puder ler sozinha esta carta. E é bem estranho serem apenas 12% de mulheres legislando, se somos mais de 51% da população brasileira. Sabe, filhota, porque temos tão poucas mulheres no parlamento? Porque acham que poder é coisa de homem. Porque acham que nosso dever é zelar pelo lar. Juro pra você que acham isso! O presidente golpista atual, o senhor #ForaTemer disse isso quando assumiu o poder: que o papel da mulher na economia era bem importante, afinal nós pesquisamos os preços no supermercado. É de cair os butiá do bolso, filha! Ir ao supermercado é coisa de quem come, não coisa de mulher. Não se esqueça disso, tá?


Sobre salário, temos uma defasagem de 30%! É muita coisa, ainda mais se compararmos os índices de escolaridade: com ensino médio, são 52% de mulheres em relação aos 42% dos homens, e no nível superior, 15 % das mulheres e 11% dos homens, ou seja estudamos mais e ganhamos bem menos. Eu desejo mesmo, filha, que quando tiveres 30 anos, tu exerça uma função que te faz feliz e que te remunere de acordo ao cargo, e não de acordo com o fato de teres nascido menina. Desejo que jamais escutes, como eu escutei num concurso para professor adjunto numa universidade federal o que seria do meu casamento se eu e o pai do teu irmão vivêssemos em cidades separadas. Oi? Isso é coisa que se pergunte em defesa de memorial? Desejo também que não te chamem de lésbica comunista, como me chamaram em sala de aula, quando xinguei os futuros engenheiros por comentários machistas, até porque sexualidade jamais deveria ser usada como xingamento. E sei que você sabe que meninos podem namorar meninos e meninas podem namorar meninas, porque o que importa é o amor. Mas o fato é que não temos direito ao conhecimento sobre nosso corpo.


Atualmente o país é campeão em cirurgias pra mudar a vulva. Aham, as mulheres vão ao cirurgião pra cortar, esticar, arredondar os lábios vaginais pra agradar a homens que não sabe lidar com uma vulva de verdade. Querem “ppks” lisinhas, simétricas e cheirando a baunilha. Isso pra mim é receita de sorvete, mas ok, se você quiser uma ppk lisinha, que seja por tua vontade, não pra agradar os outros.


Somos obrigadas a tomarmos pílulas que nos tiram a libido, mas querem que sejamos fogosas, mas com discrição, porque quem gosta de sexo é puta. Não dê ouvidos, sexo e orgasmos são das melhores coisas da vida, o que você precisa é se cuidar: use camisinha, não confie na fidelidade dos outros, protege teu corpo. manda a localização de onde estás pras tuas amigas e não tenha medo de dizer não.


Eu torço, filha, pra que se engravidares, possas ESCOLHER sobre teu corpo: hoje em dia aborto é crime, salvo raras exceções e, pasmem, a bancada evangélica quer tirar o direito da mulher de abortar até em caso de estupro. Falando nesse assunto tão doloroso, filha, existe abuso e estupro de menores, sendo que eles são cometidos por homens em sua maioria, e relacionados da família. O que eu poso fazer agora pra te proteger é ensinar que só pode tocar teu corpo quem você der permissão, e pra dar permissão, você tem que ser crescida e ter idade suficiente pra falar de sexo, senão, é estupro de vulnerável sim. Que medo eu tenho, filha, afinal no Brasil, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada e o Brasil de agora é o 5º. no ranking de feminicídios do mundo. Aqui, a frase de Simone de Beauvoir foi transmutada em “não se nasce mulher, morre-se”.



Filha, pensa na luta que temos pela frente. Te escrevo essa carta hoje, no teu terceiro ano de vida, eu sendo mãe já há mais de 8 anos. Tento todo dia dar uma criação igualitária a ti e a teu irmão: lá em casa criança brinca com brinquedo e usa roupa da cor que quiser. Todo mundo lava louça, tira o lixo e bota sua roupa suja no cesto, mas se eu ensino teu irmão que jamais ele deve violar o corpo de ninguém por ser menino, eu te ensino que deves lutar para que não violem o teu. Oxalá no futuro, se tu quiseres ser mãe, esse tipo de coisa não tenhas que pensar.


No dia internacional das meninas, filha, eu desejo que te vejam como gente.

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